setembro 25, 2010

«Dele se disse que é o mais secreto dos poetas, e seguramente isto aproxima-se da verdade, pois para Walser tudo se convertia por inteiro no exterior da natureza, e o que lhe era próprio, mais íntimo, passou a vida inteira a recusá-lo. Recusava o essencial, o mais profundo: a sua angústia. Tal como ele mesmo dizia no seu romance Jakob von Gunten, disfarçava o seu desassossego no mais fundo das trevas ínfimas e insignificantes».
[Enrique Vila-Matas em "Doutor Pasavento"]

Não sabia desde quando a génese dos seus caprichos passara do campo dos sonhos e da idealização, para terrenos mais subterrâneos. Sabia sim, que um dos resultados desses mesmos caprichos derivou na dignidade por coisas tontas, que já por ser mais sofridas lhe pareciam agora menos tontas, mais aceitáveis, desde que permanecessem na esfera da sua solidão.
Aquilo a que luzia chamar de "suas pequenas dignidades" só a ele lhe dizia respeito, ja não por irremediável capricho, mas por não ter utilidade quer para a ética social, quer para as circunstâncias do mundo.

setembro 23, 2010


«Tenho de procurar uma nova vida, mesmo que a minha vida inteira venha a ser apenas a busca de uma nova vida.»
[Robert Walser em "Os Irmãos Tanner"]

setembro 22, 2010

Diário a Beatriz/ dia treze

Meu Deus! assim que a bruma cessa a sua influência e os labirintos de Minos são reduzidos a um jardim de Versallhes, como se dispara claro o horizonte e usufruindo das minhas asas posso insurgir reconciliado contra a distância. Há muito que o mais puro dos sentimentos que me subsiste é o de achar a morte voluntária.

setembro 16, 2010

Diário a Beatriz/ dia doze

Sinto que estou a ser engolido pelo meu oceano interior e não há terra à vista, rocha alguma, qualquer cetáceo de refúgio. Abriu-se uma brecha desta realidade para essa realidade maior ainda. Já não sei se vou a tempo de optar por uma. Em breve estarão as duas perdidas.


setembro 12, 2010

Diário a Beatriz/ dia onze

Somos homens e mulheres porque queremos ser maiores que as palavras, suplantar os sentimentos, resistir à sinceridade, aos nossos desejos, e, quando de novo arrastados a animais olhar o alto das estrelas e lançar nesses anos-luz a distância do nosso sonho em fuga inacessível à gravidade que nos oprime.

setembro 11, 2010


«Ele diz: «Não amo mulheres. O amor está por reinventar, sabemo-lo. Às mulheres só interessa conquistar uma posição segura. Uma vez instaladas nela, coração e beleza são postos à margem: só um frio desdém permanece, alimento do casamento de hoje. Ou então vejo mulheres nas quais brilha a estrela da ventura e de que eu poderia fazer excelentes camaradas. Estas, são devoradas em primeira mão por brutos sensíveis como fogueiras...»

Delírios, Rimbaud (tradução de Mário Cesariny)

setembro 06, 2010

HAVING THE HAVING

I tie knots in the strings of my spirit
to remember. They are not pictures
of what was. Not accounts of dusk
amid the olive trees and that odor.
The walking back was the arriving.
For that there are three knots
and a space and another two
close together. They do not imitate
the inside of her body, nor her clean
mouth. They cannot describe, but they
can prevent remembering it wrong.
The knots recall. The knots
are blazons marking the trail
back to what we own and imperfectly
forget. Back to a bell ringing
far off, and the sweet summer darkening.
All but a little of it blurs and leaks
away, but that little is most of it,
even damaged. Two more knots
and then just straight string.

Jack Gilbert

setembro 05, 2010

Diário a Beatriz/ dia dez

Ansiando o amor de Adão, Eva entregou-lhe a maça sem lhe dizer abertamente do que se tratava, pois dessa forma obscura já ele, a desejando secretamente, a havia pedido. Vendo o fruto Adão terá percebido que também a amava e provou. E assim se concebeu a condenação do sonho.

setembro 01, 2010

D. Juan telefonou

Quando telefonou estava a preparar-me para almoçar, daí hesitei mas acabei por atender. Depois dos cumprimentos e de alguma brincadeira apalermada da praxe, esperei que me falasse do que presumia ser mais um episódio da sua vida de D. Juan.
Geralmente não me interessavam os assuntos do coração ou simplesmente dos flirts mais ao menos amorosos, no caso dele uma necessidade extrema de sentir-se querido (um estágio precursor do sentir-se amado) e valorizado inclusive pelos seus predicados físicos. A minha vida tinha há muito um sabor cinzento e de certa forma austero no que respeita a temas frívolos, de modo que só mesmo este peculiar e humorado D. Juan era capaz de fazer-me cogitar efabulações e cenários sobre as suas aventuras, a que não era alheia uma certa perversidade ainda ingénua com que abordávamos los temas calientes. Apreciava sobretudo quando me contava a parte que entregava à sua nova eleita o mesmo poema de sempre do poeta romântico César Britos. Disse-me que tínhamos razão quando concluíamos amiúde que a vida é bonita, tanto no bom como no mau. A sua boa disposição tocava lá no alto, pelo facto de estar, segundo ele, na fase curiosa do amor platónico, o que para ele em grande parte significava a falta de contacto físico. Porém já tinha sido compensado com notas escritas da não menos Dª. Juana com frases arrebatadoras tipo: "Sinto um tremor em cada palavra porque tu vives em cada uma delas".
-Essa é a fase mais bonita -disse, animando-o.
-Talvez, mas eu prefiro a fase seguinte - respondeu mostrando ansiedade.
-Pois! A fase seguinte é a melhor, mas não é a mais bonita.
-Tens razão -disse-me rindo e fazendo-me rir -São duas coisas diferentes. Nunca tinha pensado dessa forma. Talvez o mais bonito não seja o melhor. Eu acho esta fase bonita mas quero é a fase melhor.
Rimos algum tempo. Como de outras vezes o "bonito" tinha sido a nossa simples conclusão sobre um facto da vida. E era sobretudo isso que me fascinava nas nossas indagações. Pensando em conjunto, sem saber se brincávamos ou falávamos seriamente, a união das nossas interpretações tornava possível a total compreensão de qualquer acontecimento. Representávamos algo que nunca tínhamos ensaiado, mas que quase sempre conduzia a uma resolução prática, convencendo um ao outro que a vida era leve - como se o objectivo de atingir o "melhor" fosse um conceito ilusório de nos sentirmos integrados, preparados para a massa existencial. A vida era "bonita", o que pelo menos naquele dia abriu-me o apetite enquanto almoçava mais uma vez só.