fevereiro 23, 2011

Estratagema

Falarei de um homem que estava prestes a apresentar publicamente um novo livro de poesia. Apesar de já ter publicado alguns livros, este era, sem excepções, um momento de enorme tensão. De facto não havia altura, na vida do homem que falo, onde se sentisse mais desamparado do que na apresentação dos seus poemas, na forma de um possível segmento particular tendendo para um todo demarcado - uma outra justificação para a composição física de um livro. Desta vez, para minimizar o seu estado de ansiedade resolveu editar o seguinte poema entre os demais:

Um estratagema pode ter o seu lugar
quando é o manto que preserva o mentor.
Pode ser mais que uma bandeira
uma bandeira pode não ser nada.
Na apresentação pública a leitura no plano da incoerência.
Tomara que o homem não se engane, ou podíamos
pedir apenas, que o estratagema resulte.


No decorrer da apresentação na Biblioteca Municipal (falamos do homem-autor do livro "Poemas Incoerentes"), decidiu ler um único poema do livro, precisamente o transcrito em cima. E sentiu-se mais confortável, mais seguro. Respirou melhor e a tensão diminuiu o suficiente para se tornar mais espôntaneo, estado que sem dúvida lhe tornavam os potenciais lapsos, em agradáveis e ligeiros acrescentos à presa solenidade do momento que o pano da bela bandeira nacional, atrás de si, conferia à envolvência do espaço.

(em jeito de suplemento obviamente dispensável)
Não queria representar alguma voz da nação (nem podia se quisesse). Para ele a identidade da poesia nacional, os seus valores e actores, eram de um assombro deslumbrante de beleza e diversidade; isto ainda num país tão pequeno. Não era que ele entendesse intelectualmente esse mundo prodigioso; mas comovendo-se algumas vezes em leituras famintas, intuíu que aqueles senhores (em maior grau os do passado), com certeza que mereciam pelas suas virtudes a mais alta estima e honra pública, e acima de tudo, mereciam ser lidos. Mas ele ambicionava, sem saber se por cima de outra coisa mais, ser um homem. Se calhar, para ser um homem, não era preciso tanta coisa como ele pensava que era. Outra estória porém... O que vale aqui, quase como uma variante linear de um brasão de armas, era que o nosso homem não era um poeta do país. Definitivamente, nem mesmo era um poeta. Só a repetida justificação de ser mais um homem na ilusão de tentar, dentro de um determinado contexto, ser mais verdadeiro; na qual a ideia de si próprio, de escrever versos como quem faz biscates, adicionava considerável boa disposição. Para ser honesto, este homem, achava que merecia preservar a sua voz (o que é notoriamente distinto de merecer ser lido).
Não acho que o homem faltasse com respeito à pátria, mesmo quando na altura de uma pequena conversa com os participantes na apresentação e sentindo repentinamente que ia espirrar, inclinou de súbito a cabeça para a rectaguarda atingindo ao de leve, com os sedimentos derivados da materialidade incauta do seu sopro mal abafado, a sedosa e imponente bandeira nacional da biblioteca pública.

O último suspiro da esperança

Senhora - eu não sou digno
que entreis em minha morada
mas dai-me um só verso
e a minha musa será salva.
Mar - eu perdi a coragem
de me perder na viagem
mas lavai-me com uma só onda
e encontrarei um barco negro.
Um sinal. Onde estão os que guardei?
Que sentido tem, afinal, um recomeço...
velhas esperas - que impotência ainda sentir.
Futuro? Nem sarcasmo resta, só
uma ideia tola de evasão - nunca
saberás se não fores como eu.

fevereiro 03, 2011


Ninguém alcança o poder sozinho.
As crianças evitam os escolhos com uma inocente dança.
E além de o obter por benesse alheia descobre-se também a si próprio fonte de poder.
Depois, no entanto, o corpo perde a jovialidade da dança.
A usura.
O valor de cada um é um bem que apenas pode ser explorado por intermédio do outro.
Mas é a vontade de dominar determinada superfície do mundo que as chama.
Irresistivelmente.