novembro 24, 2010

As Sereias de Homero a Picasso

O episódio das sereias insere-se num conjunto de histórias repletas de elementos fantásticos contadas na Odisseia de Homero. É no canto XII que encontramos o relato narrado por Ulisses por altura da sua estadia na Ilha dos Feaces. Julga-se que este tipo de episódios eram conhecidos antes da Odisseia, inseridos na velha tradição poética e mitológica. No mito dos argonautas já se referia que a nau destes, tinha sido a única a sobreviver às sereias. Para os gregos da antiguidade as sereias eram divindades marinhas, representadas com cabeça e peito de mulher e o resto do corpo de ave. Habitavam numa ilha a oeste da Sicília e enfeitiçavam os navegadores com cantos irresistíveis, com a finalidade de atraí-los contra rochedos e provocar a sua morte. A Odisseia diz-nos que foi Circe quem alertou Ulisses para os perigos das sereias, assim como divulgou a estratégia para resistir ao belo canto das sereias, de forma a ultrapassar mais um obstáculo na viagem de regresso a Ítaca. De facto, neste episódio fantástico e simbólico podemos deparar com três primordiais significados.

Num primeiro plano configura-se uma metáfora existencial onde a viagem marítima é a própria vida; neste sentido, o canto das sereias representa as tentações e as distracções que impedem o homem de seguir o seu próprio caminho. Este afastamento significa uma tragédia para o homem, a sua perdição e a sua morte. A lição proposta pela Odisseia, é que o homem deve ignorar de uma forma heróica tudo o que o desvia da sua rota ou do seu destino, protegendo-se do que é belo mas também perigoso, navegando no mar da vida salvaguardando a sobrevivência. Para isso é necessário por vezes ignorar os sentidos, como os marinheiros de Ulisses fizeram tapando os ouvidos com cera. Ulisses, de pé, agarrado com cordas ao mastro, está preso e por isso a salvo. Não seria exagero considerar que o homem agarrado a convicções fortes resiste melhor a encantamentos exteriores, aceita com mais resignação o sofrimento da negação dos mais fortes desejos e das mais desafiadoras tentações.

Num segundo plano (que se afigurou polémico e complexo ao longo da evolução da humanidade), as sereias personificam o elemento feminino, e o canto das sereias traduz as tentações sensuais e a beleza com que a mulher seduz o homem. De facto, a própria definição das sereias nunca foi consensual. Houve quem as visse como divindades e ninfas, mas também como monstros ou demónios. No romantismo prolifera o paradoxo. A mulher é vista como anjo e demónio ao mesmo tempo, no entanto é um ser superior a quem o homem se submete. Como diz Simone de Beauvoir, "o homem preso a seus encantos não tem mais vontade, projecto e futuro; não é mais cidadão, porém apenas uma carne escrava dos seus desejos". Ulisses sente desesperadamente o encantamento da voz das sereias. Quer soltar-se do mastro para abraçar as belas vozes, esquecendo por momentos que o seu objectivo é regressar a casa para ficar ao lado da sua amada Penélope. É por isso, a infidelidade que está em causa, a paixão e o prazer imediato em confronto com o dever matrimonial de fidelidade e da união prolongada no tempo do casal.

Por último é possível relacionar os perigos que as sereias personificam (atraindo os navegantes para os rochedos para aí os engolirem), com os perigos do mar. A viagem de Ulisses decorre no mar mediterrâneo, centro da civilização grega. Um dos maiores inimigos de Ulisses é Posídon, o deus dos mares, interveniente directo sobre as forças da natureza influentes nas condições da navegação marítima. Camões, na epopeia “Os Lusíadas”, relata os feitos históricos lusos tendo como ponto central a viagem de Vasco da Gama para a Índia. Tal como na Odisseia são descritos os perigos do mar belo e traiçoeiro, servindo a intriga entre os Deuses para explicar muitos dos fenómenos naturais a que os mares são propensos. Na Odisseia o canto das sereias é precedido por “uma acalmia sem vento”. Mas não é altura de facilitar. O sossego aparente esconde perigos maiores, os quais não podem ser subestimados pelos marinheiros. O mar é manhoso, difícil de conquistar e domar. Quem adormece e dá-se a facilidades está sujeito à tragédia do naufrágio, fica em eminência de ser engolido pelas ondas e apodrecer no fundo das águas. No entanto o mar é amado pelos marinheiros, principalmente pelos que conhecem e respeitam os seus perigos, as suas severas leis.



Em 1947, numa estadia prolongada na Côte d’Azur, Picasso pintou num mural do actual Museu de Antibes, o tríptico "Ulisses e as Sereias". Esta obra insere-se num conjunto de trabalhos sobre o mediterrâneo e os seus mitos. No centro surge um rosto à frente de um mastro. É possível ver uma vela branca de um barco acompanhada pelos tons azuis das águas serenas do mediterrâneo. Na parte de cima do mural, atrás do barco, vislumbra-se a ilha das sereias e duas máscaras que escondem a identidade das ninfas marinhas. O rosto de Ulisses surge ampliado pelo desejo. Curiosamente tem os ouvidos tapados, a que não é alheia a interpretação irónica de Picasso; para o pintor a tentação que o canto das sereias representava era de tais proporções que nem o Herói grego, mesmo preso por cordas ao mastro, poderia suportar tal encantamento. O herói torna-se mais humano, mais pequeno e limitado. As sereias são representadas por formas de peixe com contornos ondulantes e sensuais e pela figura da ave que expressa o seu canto sedutor. Por todos os lados as sereias envolvem o desesperado Ulisses, que parece cada vez mais aprisionado pela dança dos movimentos sugeridos. Na obra surge um novo Ulisses como herói modernista, talvez mais falível e inseguro, mas não menos ambicioso na sua condição de explorar o mundo complexo da mente humana.