julho 31, 2010

Diário a Beatriz/dia dois

Em contacto constante com naturezas mortas é natural que as minhas mãos vivas transmitam à minha cabeça a desolação do infinito. Aridez. Um vulto vagueará tal aridez, mas ainda não cheguei a essa distância. Por enquanto as portas, a chuva, as sirenes, os tufões. Numa revolta constante para saber qual deles chegará com sucesso aos meus ouvidos e irá conseguir aceder secretamente à nuca dos meus olhos, o esconderijo mais cobiçado por todos os parasitas.
Saí de casa e voltei com Shutter Island, o último de Scorsese, gostei do início e do fim, mas não percebi o que anda lá pelo meio.
Existe um grande preconceito relativamente à loucura. Se conseguíssemos perceber a ilusão calculada em que vivemos, talvez não desprezássemos tanto a sinceridade em favor do pragmatismo.

julho 29, 2010

A cada um o seu teatro. Cada um a representação cénica do que diz a mãe, do que diz o pai, do que dizem as câmaras de vigilância no local de trabalho. Cada um a patinhar o chão que a lenha ardida em solidão encheu de fuligem. Os outros, vistos de longe são a soma dos seus vestidos. Finos como caniços. Insignificantes como o suspiro de um velho. Mas no Verão pavoneiam-se com os seus corpos nus à espera que alguém olhe, como se ninguém estivesse a olhar. Cada qual no seu palcozinho onde um holofotezinho faz as vezes do sol. Cada um ensaia o texto que a mãe, que o pai, que as câmaras de vigilância do local de trabalho. Cada qual fala em circuito fechado a duvidar da sintaxe, dos sintomas. As impenitências da língua obrigam a uma constante revisão dos sentidos.
Diário a Beatriz/dia um

Ainda nem vinte e quatro horas volvidas e a resolução que muitas mais deverá enclausurar me parece já uma cedência frívola a uma ordem que apesar de anunciada elegante pelos folhetins nunca sofreu real investida da morte sobre os seus domínios. Não será melhor mentirmos ao mundo do que a nós próprios? Se dermos uma hipótese que seja à dúvida talvez ela nos vença. A separação não é virtude nem infâmia nem o que quer que seja. Ipso facto, aquele que quiser alcançar a aurora deverá expor o seu corpo à treva?


julho 26, 2010

Conversa com livros

«Sentia que se esgotava em mim o interesse e a curiosidade pelas coisas que ia deixando para trás, mas estava animado por um tal entusiasmo, por uma tal curiosidade pela vida nova que se abria à minha frente, que tudo o que existia me parecia digno de interesse. Tremia de entusiasmo, baloiçava as pernas nervosamente, até que a profusão, a riqueza, a complexidade de todas as possibilidades se transformaram, dentro de mim, numa espécie de terror.»
[Orhan Pamuk em "A Vida Nova"]

Parecia que as coisas antigas de que me queria ver livre a todo o custo não me largavam. Não saberia ainda nomeá-las, e apesar de virar as costas à almágama dispersa na velocidade invisível e pertubadora, tentava atrair uma força capaz de expulsar os fantasmas que sentia atravessarem-me por toda a pele. Tinha que haver algo mais, mesmo que duvidasse incessantemente da minha sorte em atingir a Vida Nova. Por vezes, preocupava-me a ideia recorrente de que o meu tremor e fascínio pela novidade fossem uma farsa, como se eu fingisse em acreditar em tudo o que não conseguia ver, como tivesse ganho colateralmente um hábito, mesmo um vício; um reflexo mais do que condicionado, de faculdade inoperante (para não dizer trágico).

julho 25, 2010

E isto agora já me parece um desafio. Escrever em exíguas linhas de escasso engenho o indispensável longo alcance proposto a concluir a introdução deste blogue, dar continuidade ao diálogo aberto que se pretende com os restantes cronistas, falar também dos epitáfios colectivos e por fim deixar evidenciado o que tudo isto pode contribuir para uma tomada de consciência elucidada acerca da alteração constitucional proposta pelo PSD. Partindo daqui, não tenho dúvidas que irei precisar, para além de um verdadeiro rasgo de génio, da ajuda de todos os leitores. O lapso de génio, porém, já tive e foi o de pedir ajuda a terceiros. Façamos assim, de seguida eu vou procurar escrever uma alegoria e as senhoras e os senhores irão demonstrar a boa vontade e a imaginação de a transformar num ensaio de Montaigne.
Estes eventos tomaram lugar entre as 14h00 e as 20h00 de ontem. Para quem não está a par de todos os esguios detalhes da interessante agenda cultural da zona metropolitana do Porto, começo por dizer que terminou este sábado em Serralves a iniciativa jazz no parque que trouxe ao Porto alguns dos mais reputados músicos nacionais e internacionais da referida manifestação artística. A entrada não era livre e os convites custavam dez euros. Ainda assim e por "apenas" dois e meio todos aqueles que tiveram a pouca sorte de não conseguir o ingresso puderam e poderão dizer: «teremos sempre o parque». O escolho de tudo isto, no entanto, encontra-se no facto de, não obstante a qualidade indiscutível da música de Liebman e companhia, a beleza vegetal do espaço, principalmente de um imponente pinheiro manso presente nas imediações, e do idílio cesariano sugerido pelo voo dos aviões com escala no Sá Carneiro, relegar para segundo plano os acordes eximiamente retirados pela band das madeiras, dos metais, das cordas e da percussão. E assim quantos dez euros não era cada um de nós capaz de oferecer a quem nos prometesse uma tempestade capaz de depenar o pinus dos seus frutos e um bilhete para fora de Portugal em cada uma daquelas barcaças voadoras? Contudo, não é lícito (entenda-se lúcido) desejar tanto, como diria o capitão Nascimento no filme Tropa de Elite, o sistema não existe para resolver os problemas das pessoas, o sistema existe para resolver os seus próprios problemas.
Bem hajam.

julho 24, 2010

Then practice losing farther, losing faster. A perda como aventura, como precocidade. Acto programado de crescer – melhor, amadurecer no sentido em que os frutos deixados a sós amadurecem. Não aguentar que as coisas amadas nos façam sofrer – conhecer-lhes antes do tempo o limite, esvaziá-las. A perda como golpe e excitação.

julho 22, 2010

Escrevemos com derradeira esperança, tentando cada um lapidar a sua frase. O que fica na margem dos poemas, da prosa, da escrita do dia ou de um dia sem escrita. Restos, uma costura mal alinhavada. Escrevemos: se partilhamos é por acaso.