fevereiro 26, 2012

Fecho 477

Tenho saudades. Tenho febre em destoar pelas saudades de mim. Nostalgia terrível do espaço onde é possível assistir-me. Quero estar só no modelo ideal provocado pela escuridão, embrionário das primeiras ânsias, nesse típico fogo belo e desordenado.
Querer unicamente seguir – ser engolido a partir de dentro, em gestos não violentos além da visibilidade das cores desbotadas e de canais retorcidos como ferros maleáveis. Quero amplamente voltar – implodir de um extremo ao outro, poupando-me ainda à configuração do instrumento do ruído, cavalgando na geometria disseminada do arco-íris, suficientemente longe para não estalar gotículas de medo.
Quero enganar-me. Destoar com precisão biológica. Tentar-me desprovido dos ensinamentos exteriores, o mesmo que esquecer transcendentes enunciações filosóficas, o mesmo que desarticular a convergência dos saberes civilizacionais. Querer travar a luta do mito da realização não pela cultura colectiva, mas sim pelo incompleto em relação ao absoluto da minha ilusão potencial. (Ilusão é a alma).
O poder de distrair-se na direcção certa… transportar, sem disso ou alguém dar conta. Pois se tudo levo não é mais do que fortalecer uma exclusiva pessoalidade. E se não trago nada nem ninguém, posso finalmente aproximar-me da música reproduzida pela repetição da orquestra selvática do mundo, na qual me interponho no silêncio do sol.

fevereiro 05, 2012


Diário a Beatriz / dia trinta

Será, Beatriz, desencontro o nome do nosso destino. E, por habitarmos a alma, a misteriosa sina de possuir sempre na lonjura do infinito a seiva que a alimenta e no vazio mais alto a estrela que a ilumina. Esta estranha força que nos assiste constante, preclara ao nosso desassossego de ver sempre tudo como talvez veria um cego de nascença se após o milagre da sua cura fosse a noite a sua primeira visão. A única esperança que se concretiza é aquela que se adia para sempre. Sabes bem que me entregarei a outras mulheres como te entregarás tu a outros homens. E seremos claros nisso como a manhã e profundos como o abismo e assumiremos com serenidade o desatino desse sangue e com modéstia a consequência dessa carne.
Onde estivermos não estará o nosso coração e habitaremos o corpo como um vagabundo que se abriga nas ruínas de uma casa abandonada.
O futuro virá. Quem formos. Não poderemos amar. Não poderemos morrer. Estaremos abandonados onde nenhuma realidade nos sabe exigir.

fevereiro 02, 2012

Bernard Quiriny

Pierre –Alexandre Skovsky (1919-1940): filho de pai russo e de mãe suíça, este rapaz foi um modelo de precocidade em todos os domínios. Aos nove anos, foge de casa e erra durante quatro meses pelas estradas da Europa antes de os guardas o deterem e reconduzirem ao domicílio familiar. Aos treze anos, especula na bolsa, ganha uma fortuna e compra vinte hectares de vinha que a filoxera devasta logo a seguir. Aos quinze anos, tem dois filhos: o primeiro morre ao nascer, ao mesmo tempo que a sua mãe; o segundo, filho de uma senhora da sociedade quase menopáusica, nasce idiota e desprovido do braço esquerdo. Aos dezasseis anos, escreve a sua autobiografia, Um Jovem Apressado. Entre os dezassete e os dezanove anos, redige seis romances, dois dos quais em russo, casa-se, divorcia-se, passa seis meses na prisão por burla, converte-se ao catolicismo e perde um olho num acidente a cavalo. Aos vinte anos, queima todos os seus manuscritos, reescreve-os e queima-os de novo – escapa apenas a segunda versão de Um Jovem Apressado. Um ano mais tarde, mete uma bala na cabeça depois de ter garatujado as seguintes palavras no canto de uma mesa: “Vivi bem; estou a envelhecer. Vou-me embora.”

Bernard Quiriny, Contos Carnívoros, Edições Ahab