agosto 30, 2010

aldeia do céu

«...Licancabur queria dizer em Kuanza, que era um dialecto de Atamaca, terra de acima. Havia também quem, cristianizando-o, lhe chamasse de aldeia do céu, ou directamente céu. Começou a dar-me muitos detalhes do género e a implicar-me cada vez mais na investigação das almas ultraterrenas que possivelmente estavam todas refugiadas no alto do vulcão chileno.
-Descobriremos a verdade do além -disse ele
-Cuidado! Que quem busca a verdade acaba sempre por merecer o castigo de encontrá-la -adverti-o eu.»
[Enrique Vila-Matas in "Exploradores do Abismo"]

Não sei porque seleccionei este fragmento. Virá outro relacionado.
Não sei porque escolhi este momento. Este é um dos momentos, de núcleo inteiro..........................................

Sei que a busca da verdade é a ilusão mais querida, e parece-me justo procurarmos o castigo que só a cada um pertence. E não quero mais que aliviar a dor do teu castigo, tu meu herói, que encantado segues voltado para a face mais elevada da terra, onde pelo menos para ti dançam sem surpresa, céu azul e fogo do passado.
Dormem o homem e a mulher que não voltarão a ser - que a tua respiração não cesse para recordar; ou queria dizer, que a tua respiração não cesse, timidamente já - não cesses.
Pisa, por favor, a lava da encosta. São marcas alteadas do desejo engolido, matéria que não guarda o mais pequeno acontecimento. E senão te chegar tudo que ardeu desde as pontas dos tempos, pisa as almas de todos os piedosos mortos depositadas no cimo da cratera, ansiosas elas de minorar o teu castigo, a tua busca, também do teu abismo modelar as cinzas.

Não confundas a tua voz com o lago gelado
nem a visão do cume mais alto com o cume mais alto
nem a fotografia de Licancabur com Licancabur
porque o dono do momento é segredo bem guardado.

agosto 29, 2010

Diário a Beatriz/ dia nove

E então o viajante disse para si mesmo, nas suas orações:
Chegará um tempo em que sobreviverá a desolação, e em tal aridez te encontrarás que tudo te soará, oco e vazio, um doce chamamento ao fim dos trabalhos. Nessa altura, presta atenção, será momento de comeres sem fome, beberes sem sede, acreditares sem fé e amares sem amor.

agosto 26, 2010

Diário a Beatriz/dia oito

E eu que estava prestes a deixar a humanidade, olhando uma vez mais por sobre o ombro esquerdo senti essa consciência que me observava assim e percebi que ainda não era digno do exílio. Ao fundo a pergunta que a maré vaza vinha tornar submersa: Porque haveria alguém de criar um sítio onde não existe mais ninguém?


agosto 20, 2010

Diário a Beatriz/dia sete

Todos estes erros por nós cometidos, de indiferença, de afastamento, para preservar afinal uma hipótese ainda que ridícula, pecaminosa, de um reencontro nas cinzas, essas instâncias de conservação que nos levam agora numa velocidade furiosa ao encontro subterrâneo. Saberemos algum dia deixar a clandestinidade, ou estarão definitivamente fechados os nossos olhos?

agosto 18, 2010

Uma rabujice

Quando digo que trabalho numa livraria, as reacção nunca divergem muito. Entre o optimista “É melhor do que a caixa de um super-mercado” e o lisonjeiro “O livreiro tem o seu quê de sedutor”, eu lá vou baixando a cabeça com um sorriso comprometido. Raramente rebato com “O dia-a-dia de um livreiro não é ler livros”, e cada vez mais me escuso a explicar que atrás de um balcão o trabalho é sobretudo burocrático (criar fichas de livros, conferir e dar entrada de facturas, imprimir listagens de devolução, aceitar pagamentos e dar trocos ou debitar o ‘verde código verde’ do multibanco) ou bruto, quando há que recolher e acomodar em caixas as trintenas de livros que três meses antes foram entregues, etiquetados, desempacotados e postos à venda.
Se durante alguns meses este tipo de rotina é suportável, porque nimbada da expectativa romântica de que em breve haverá bons livros a conhecer e pessoas interessantes com quem conversar, chega – e, no meu caso, digo chega quando ando nisto há três anos – a altura em que é quase com nojo que vemos chegar as novidades dos grandes grupos editoriais e com condescendência que atendemos clientes quase sempre impacientes, irascíveis e que, se não encontram o livro que procuram, exigem que o produzamos na hora (noutro dia poderei falar do poder demiúrgico que é atribuído ao livreiro sobre toda a letra impressa).
Mas tudo isto, podem pensar os apologistas do charme livreiro, não é mais do que um desabafo: estar rodeada de livros é reconfortante, muito mais do que estar rodeada por pacotes de arroz e leite, pensam por sua vez os eternos optimistas. Concedo que, dentro da gama de profissões que uma licenciada mediana pode exercer para trazer os geracionais quinhentos euros para casa ao fim do mês, a de livreira não é má. Não é, por princípio, desagradável mexer em livros e dar à língua com aqueles que, num recanto mais silencioso da livraria, assumem um tom confessional. O problema está na qualidade dos livros, na lógica ignóbil do mercado editorial e na rarefacção de gente que, comprando livros, não o faça por desfastio ou moda.
Passo a explicar. Ou, para fazer desta crónica aquilo que pretendo, passo a rabujar: Entre a montanha de livros que uma livraria generalista recebe diariamente, a maioria parece ter sido engendrada por cabeleireirinhas empáticas ou vendedores de automóveis com auto-estima inflacionada. Há também os jornalistas a quem um dia a mãezinha disse que escreviam muito bem. Só para dar um exemplo, hoje criei a ficha do romance de um jornalista cujo enredo gira em torno do futebol e de vaginas rapadas (sic), através do que o protagonista empreende uma jornada de descoberta pessoal. Há as cozinheiras que mordem, há a Arte da Guerra para mulheres obesos e desempregados, o Salazar-chic que se ancora na estante da História de Portugal para fazer redivido o simpático ditador, há o clube de amigas da Ophra, há brasileiras que ensinam as portuguesas a segurar o home’…. Etc, etc.
Depois há as modas dos títulos: “A menina que…”, “O homem que…”, “O gatinho com cauda de pónei que…”. Diga-se em abono deste género de livros (geralmente atravancados entre as secções de Romance, Infantil ou Memórias/Testemunhos) que são feitos por gente simpática – as tais cabeleireiras com o 12º ano de escolaridade – para gente simpática. O que só os torna mais irritantes.E a moda das badanas e dos autocolantes cintilantes, onde outro autor elogia o autor do livro em questão. Uma mão lava a outra e os editores borram qualquer obra com estes dizeres: “Nem o Dostoievski faria melhor”, “Um livro a ler antes de morrer”, “Lobo Antunes apresenta”, “A obra que vai curar a sua vida”, “Os 10 mandamentos da perda de peso”, “Se leu o livro X, este é do género”. E por aí adiante.
Preocupante mesmo é que quase toda a literatura estrangeira esteja reduzida a traduções de originais em língua inglesa. As editoras só compram os direitos daquilo que se pode traduzir e, pelos vistos, só se pode traduzir do inglês. Quando um autor de outra língua é Nobel, lá se faz o especial favor de editá-lo em português, até porque algum grau de exotismo serve sempre para desanuviar. O ritmo de edição é alucinante, não convida à ponderação por parte dos editores, à reflexão por parte dos leitores. Para a grande maioria dos livros que recebo, guardo uma palavra: grotesco. À vontade de editar um livro, que a tenho, ocorre-me um pensamento: obsceno.
Preocupante também é que, quem não conheça a nossa literatura e procure jovens autores portugueses, quase só encontra homens. Além da tríade de rapazolas trintões do costume, lá indico a Dulce Maria Cardoso, a Mafalda Ivo Cruz (ambas passadas dos quarenta). E pergunto-me: Não haverá mulheres a escrever? Das mulheres que escrevem, espera-se que explorem temáticas ‘femininas’? Uma jovem autora não é credível? Não é legítima? É desconfortável para os editores e para o público que as mulheres explorem temas que não sejam do âmbito do doméstico e das relações amorosas?
Mas estas questões fogem já ao meu propósito inicial, que era o de mostrar por que motivo uma livreira – ainda que possa ter, como uma vez ouvi, o emprego mais nobre reservado a um pobre – nem sempre está rodeada de conhecimento em ebulição. A sensação que tenho é sobretudo de ruído. Capas brilhantes sobre capas em relevo. Formatos mais propícios a ficarem na estante de casa do que a andarem no bolso. Livros a metro, às montanhas, campanhas promocionais assassinas, ritmos de publicação, venda e devolução absurdos… Quando por um acaso, por um golpe de sorte, descubro uma página de leitura refrescante, trago o livro para casa, para o sofá, para longe do espaço babélico da minha livraria generalista.

agosto 13, 2010

Diário a Beatriz/dia seis

Sei que nunca me vais amar como eu gostaria que me amasses, da mesma forma que eu nunca te vou amar tal desejarias de facto. No entanto, julgo que do nosso amor desigual se encontra o que deve em necessidade do que cada um de nós no mais íntimo de si para além do seu universo não pode sequer imaginar.
Onde termina a minha possibilidade, tu lá, eu a tua, talvez. Cada um de nós a resposta a cada um para lá dos mesmos.

agosto 10, 2010

Diário a Beatriz/dia cinco

E então para com o quê e para com quem deverá estar a minha lealdade? Penso, mas não quero pensar. A moralidade maior, envergonhada, submete-se muitas vezes ao regulamento de cartilha.
A minha aliança é para com a luz que me penetrou o cárcere, e por ela lutarei de rosto visível todos os deuses.
O que o amor nos oferece é a coragem de criar um universo iludido o suficiente a nos tornar capazes de combater os delírios vigentes.
Assim Seja.

agosto 05, 2010

Diário a Beatriz/dia quatro

Como é isto de viver pela metade ou, melhor dizendo, pela inteireza do que é falta? Apetece todos os dias avançar nas páginas do Bukowski sobre tal mistério, pairar sobre ele como só aqueles que lhe adquiriram por mérito próprio do álcool a subtileza de o caminhar nas águas de Rembrandt. Estou esquecido do que é responder com a inocência das crianças. A tua sabedoria envolve-me com a mortalha almiscarada de um longo retorno à Babilónia restabelecida dos meus sonhos.

agosto 03, 2010

Uma verdade é que não somos nada difíceis de consolar por um bocado, outra verdade é que podemos viver muito tempo daquilo que acreditamos que vamos receber.

agosto 02, 2010

Diário a Beatriz/dia três

Tu lutas e eu vejo-te lutar como se eu fosse um cadáver; contra o Outono e o Inverno. E sei que não fizeste nenhuma conta, não traçaste qualquer objectivo, continuarias a lutar mesmo que eu não estivesse aqui, e nessa altura evocarias o meu nome contra o vento e não cessarias de o chamar como se ele próprio fosse a causa do teu cansaço, da tua doença, da tua morte. Não que isto se chame amor, mas é a vida, o seu canto reverencial que reúne em si o milagre que nos une.