agosto 18, 2010

Uma rabujice

Quando digo que trabalho numa livraria, as reacção nunca divergem muito. Entre o optimista “É melhor do que a caixa de um super-mercado” e o lisonjeiro “O livreiro tem o seu quê de sedutor”, eu lá vou baixando a cabeça com um sorriso comprometido. Raramente rebato com “O dia-a-dia de um livreiro não é ler livros”, e cada vez mais me escuso a explicar que atrás de um balcão o trabalho é sobretudo burocrático (criar fichas de livros, conferir e dar entrada de facturas, imprimir listagens de devolução, aceitar pagamentos e dar trocos ou debitar o ‘verde código verde’ do multibanco) ou bruto, quando há que recolher e acomodar em caixas as trintenas de livros que três meses antes foram entregues, etiquetados, desempacotados e postos à venda.
Se durante alguns meses este tipo de rotina é suportável, porque nimbada da expectativa romântica de que em breve haverá bons livros a conhecer e pessoas interessantes com quem conversar, chega – e, no meu caso, digo chega quando ando nisto há três anos – a altura em que é quase com nojo que vemos chegar as novidades dos grandes grupos editoriais e com condescendência que atendemos clientes quase sempre impacientes, irascíveis e que, se não encontram o livro que procuram, exigem que o produzamos na hora (noutro dia poderei falar do poder demiúrgico que é atribuído ao livreiro sobre toda a letra impressa).
Mas tudo isto, podem pensar os apologistas do charme livreiro, não é mais do que um desabafo: estar rodeada de livros é reconfortante, muito mais do que estar rodeada por pacotes de arroz e leite, pensam por sua vez os eternos optimistas. Concedo que, dentro da gama de profissões que uma licenciada mediana pode exercer para trazer os geracionais quinhentos euros para casa ao fim do mês, a de livreira não é má. Não é, por princípio, desagradável mexer em livros e dar à língua com aqueles que, num recanto mais silencioso da livraria, assumem um tom confessional. O problema está na qualidade dos livros, na lógica ignóbil do mercado editorial e na rarefacção de gente que, comprando livros, não o faça por desfastio ou moda.
Passo a explicar. Ou, para fazer desta crónica aquilo que pretendo, passo a rabujar: Entre a montanha de livros que uma livraria generalista recebe diariamente, a maioria parece ter sido engendrada por cabeleireirinhas empáticas ou vendedores de automóveis com auto-estima inflacionada. Há também os jornalistas a quem um dia a mãezinha disse que escreviam muito bem. Só para dar um exemplo, hoje criei a ficha do romance de um jornalista cujo enredo gira em torno do futebol e de vaginas rapadas (sic), através do que o protagonista empreende uma jornada de descoberta pessoal. Há as cozinheiras que mordem, há a Arte da Guerra para mulheres obesos e desempregados, o Salazar-chic que se ancora na estante da História de Portugal para fazer redivido o simpático ditador, há o clube de amigas da Ophra, há brasileiras que ensinam as portuguesas a segurar o home’…. Etc, etc.
Depois há as modas dos títulos: “A menina que…”, “O homem que…”, “O gatinho com cauda de pónei que…”. Diga-se em abono deste género de livros (geralmente atravancados entre as secções de Romance, Infantil ou Memórias/Testemunhos) que são feitos por gente simpática – as tais cabeleireiras com o 12º ano de escolaridade – para gente simpática. O que só os torna mais irritantes.E a moda das badanas e dos autocolantes cintilantes, onde outro autor elogia o autor do livro em questão. Uma mão lava a outra e os editores borram qualquer obra com estes dizeres: “Nem o Dostoievski faria melhor”, “Um livro a ler antes de morrer”, “Lobo Antunes apresenta”, “A obra que vai curar a sua vida”, “Os 10 mandamentos da perda de peso”, “Se leu o livro X, este é do género”. E por aí adiante.
Preocupante mesmo é que quase toda a literatura estrangeira esteja reduzida a traduções de originais em língua inglesa. As editoras só compram os direitos daquilo que se pode traduzir e, pelos vistos, só se pode traduzir do inglês. Quando um autor de outra língua é Nobel, lá se faz o especial favor de editá-lo em português, até porque algum grau de exotismo serve sempre para desanuviar. O ritmo de edição é alucinante, não convida à ponderação por parte dos editores, à reflexão por parte dos leitores. Para a grande maioria dos livros que recebo, guardo uma palavra: grotesco. À vontade de editar um livro, que a tenho, ocorre-me um pensamento: obsceno.
Preocupante também é que, quem não conheça a nossa literatura e procure jovens autores portugueses, quase só encontra homens. Além da tríade de rapazolas trintões do costume, lá indico a Dulce Maria Cardoso, a Mafalda Ivo Cruz (ambas passadas dos quarenta). E pergunto-me: Não haverá mulheres a escrever? Das mulheres que escrevem, espera-se que explorem temáticas ‘femininas’? Uma jovem autora não é credível? Não é legítima? É desconfortável para os editores e para o público que as mulheres explorem temas que não sejam do âmbito do doméstico e das relações amorosas?
Mas estas questões fogem já ao meu propósito inicial, que era o de mostrar por que motivo uma livreira – ainda que possa ter, como uma vez ouvi, o emprego mais nobre reservado a um pobre – nem sempre está rodeada de conhecimento em ebulição. A sensação que tenho é sobretudo de ruído. Capas brilhantes sobre capas em relevo. Formatos mais propícios a ficarem na estante de casa do que a andarem no bolso. Livros a metro, às montanhas, campanhas promocionais assassinas, ritmos de publicação, venda e devolução absurdos… Quando por um acaso, por um golpe de sorte, descubro uma página de leitura refrescante, trago o livro para casa, para o sofá, para longe do espaço babélico da minha livraria generalista.