dezembro 31, 2010

Diário a Beatriz / dia vinte e um

Foi no repente de um acontecimento inesperado, como se a angústia que toda a minha vida havia vivido na minha cabeça tivesse passado para o estômago, a dor, agora não existencial mas física, portanto impossível de combater com ficções, com alheamentos, cortando a minha raiz de homem, de Ser, e lançando-me para o negro ao abandono do meu próprio vácuo - o meu próprio vácuo.
Eis o inferno.

dezembro 18, 2010


Depois de tantos anos...
Afinal o que representa o sexo para a mulher?
O facto de existir prostituição é acima de tudo uma humilhação para o homem.
Estão a ver o que lhes interessa, dizem elas a exibir a perna.
Da mesma forma que os vários poderes, a submissão do mundo pela exuberância, é uma humilhação para a mulher.
Não há maneira de fugir, é isso que somos, de uma forma sintética, redutora e crua, mas é isso que mais objectivamente somos, ponto

dezembro 17, 2010

Moradas

Quem não consegue preservar o próprio corpo nunca pensará em preservar o planeta. È um "indio" que desdenha as suas duas moradas.

dezembro 09, 2010

Diário a Beatriz / dia vinte

Buscamos então o facto extraordinário que, não nos sendo concedido pelos deuses por ausência de mérito espontâneo da nossa existência que não se encontra fadada para a glória, se deverá alcançar à revelia por mão da astúcia manha no furto. Sim, porque nem só os mármores e os bronzes e as estrelas e o ouro, também nós, não obstante a nossa condição, nos achamos no direito à felicidade. Todos anseiam o calor do seu pouco de luz. No entanto também o crime exige a sua alma.

dezembro 06, 2010

O barroco nos retratos de Velasquez e Rubens

A obra de Velásquez (1599-1660), pintor espanhol que se destacou no barroco da primeira metade do século XVII, foi reconhecida com a qualificação de “pintura pura”. As suas composições eram meticulosamente organizadas e a cor distribuída por uma hierarquia de valores coerente. As personagens e os objectos eram colocados com o objectivo de criar um espaço real, a que não é alheia a tradição naturalista espanhola e a influência do pintor barroco italiano Caravaggio também na apropriação de cores ricas e naturais. Velásquez dispunha de grandes meios técnicos que lhe possibilitavam um domínio seguro na arte de pintar.


Velásquez, Retrato Equestre de Baltasar Carlos
1635, Museu do Prado(Madrid)

Em 1623 foi nomeado pintor da corte do soberano espanhol Filipe IV. Nessa função o pintor espanhol teve como principal tarefa pintar retratos do rei e da família real. O “Retrato equestre de Baltasar Carlos” (1635), insere-se num conjunto de retratos equestres, pintados para o Salão de Reinos do Palácio do bom Retiro em Madrid. Na composição, montado a cavalo, surge o pequeno príncipe Baltasar Carlos (primeiro filho varão do rei Filipe IV e herdeiro do trono), segurando na mão o bastão, símbolo do poder real. O retrato exibe impecavelmente a dignidade e a nobreza do príncipe; o que é conseguido, quer através da cor brilhante das vestes pomposas (influência de Ticiano), quer no rosto pálido e iluminado do menino, onde com uma pincelada fluida e solta, Velásquez capta a impressão humana mais característica, deixando uma sugestão de solenidade para quem contempla a obra. É de notar que o ventre do cavalo tem uma perspectiva disforme. Isto acontece porque o retrato era para ser colocado em cima de uma porta do Salão De Reinos. Como a sua posição era alta, o quadro foi idealizado para ser visto de baixo para cima, o que ilustra a atenção dada pelo pintor à organização das suas obras. De facto, muitos críticos subscrevem a ideia que o pintor espanhol fez uma síntese entre a arte do barroco e a arte clássica. Se por um lado deu ênfase ao naturalismo e à observação da natureza sem recorrer às convenções, por outro lado nunca descurou a vital necessidade do sentido de equilíbrio procurado no renascimento. No retrato do príncipe, Velásquez confere à paisagem de fundo variações de luz e sombras, fazendo sobressair a profundidade de forma equilibrada. É ainda através de pinceladas rápidas e precisas que o virtuosismo de Velásquez antece em dois séculos o impressionismo.

De todo o modo, a obra de Velásquez insere-se no período do barroco das nações católicas, isto numa altura em que a reforma suscitou enorme conflitos sociais e religiosos na Europa. Na Flandres católica outros importantes artistas beberam na fonte do barroco na cidade de Roma, onde os artistas da época convergiam e discutiam os conceitos da arte. Pintores como Rubens e Van Dyck apreenderam as concepções do uso expressivo da luz e sombra, que foram decisivas para aprimorar as técnicas com o intuito de pintar fielmente o mundo à sua volta. Exemplo dessa escolha é a particular importância dada aos artistas flamengos “para expressar a textura de tecidos e da carne”. Rubens foi um génio do barroco da Flandres católica, que tal como Velásquez trabalhou sobretudo para a realeza. Os seus retratos são extremamente realistas. Neles as personagens adquirem enorme vitalidade, a que não é alheio o contraste da cor, assim como a utilização de cores quentes nos rostos das personagens que fazem sobressair a luz e conferem expressividade e vigor. Assim, a pintura de Rubens impressionou pela presença de vida inundada pela sua visão singular. Rubens e Velásquez coincidiram na recusa às formas ideias da beleza clássica. Ambos foram geniais na forma como interpretaram a luz, e na forma como cada um imprimiu intensidade às suas obras.



Rubens,Cabeça de criança,
1616

novembro 27, 2010

Diário a Beatriz / dia dezanove

E, à medida que os nossos corpos se aproximavam pela convergente lei da atracção, outras forças pontuais mil vezes mais poderosas, posto que infinitamente mais efémeras, despertaram para nos dar conta das circunstâncias do nosso relevo e desse perfil impor a particular história de cedência e coragem do nosso encontro.

novembro 24, 2010

As Sereias de Homero a Picasso

O episódio das sereias insere-se num conjunto de histórias repletas de elementos fantásticos contadas na Odisseia de Homero. É no canto XII que encontramos o relato narrado por Ulisses por altura da sua estadia na Ilha dos Feaces. Julga-se que este tipo de episódios eram conhecidos antes da Odisseia, inseridos na velha tradição poética e mitológica. No mito dos argonautas já se referia que a nau destes, tinha sido a única a sobreviver às sereias. Para os gregos da antiguidade as sereias eram divindades marinhas, representadas com cabeça e peito de mulher e o resto do corpo de ave. Habitavam numa ilha a oeste da Sicília e enfeitiçavam os navegadores com cantos irresistíveis, com a finalidade de atraí-los contra rochedos e provocar a sua morte. A Odisseia diz-nos que foi Circe quem alertou Ulisses para os perigos das sereias, assim como divulgou a estratégia para resistir ao belo canto das sereias, de forma a ultrapassar mais um obstáculo na viagem de regresso a Ítaca. De facto, neste episódio fantástico e simbólico podemos deparar com três primordiais significados.

Num primeiro plano configura-se uma metáfora existencial onde a viagem marítima é a própria vida; neste sentido, o canto das sereias representa as tentações e as distracções que impedem o homem de seguir o seu próprio caminho. Este afastamento significa uma tragédia para o homem, a sua perdição e a sua morte. A lição proposta pela Odisseia, é que o homem deve ignorar de uma forma heróica tudo o que o desvia da sua rota ou do seu destino, protegendo-se do que é belo mas também perigoso, navegando no mar da vida salvaguardando a sobrevivência. Para isso é necessário por vezes ignorar os sentidos, como os marinheiros de Ulisses fizeram tapando os ouvidos com cera. Ulisses, de pé, agarrado com cordas ao mastro, está preso e por isso a salvo. Não seria exagero considerar que o homem agarrado a convicções fortes resiste melhor a encantamentos exteriores, aceita com mais resignação o sofrimento da negação dos mais fortes desejos e das mais desafiadoras tentações.

Num segundo plano (que se afigurou polémico e complexo ao longo da evolução da humanidade), as sereias personificam o elemento feminino, e o canto das sereias traduz as tentações sensuais e a beleza com que a mulher seduz o homem. De facto, a própria definição das sereias nunca foi consensual. Houve quem as visse como divindades e ninfas, mas também como monstros ou demónios. No romantismo prolifera o paradoxo. A mulher é vista como anjo e demónio ao mesmo tempo, no entanto é um ser superior a quem o homem se submete. Como diz Simone de Beauvoir, "o homem preso a seus encantos não tem mais vontade, projecto e futuro; não é mais cidadão, porém apenas uma carne escrava dos seus desejos". Ulisses sente desesperadamente o encantamento da voz das sereias. Quer soltar-se do mastro para abraçar as belas vozes, esquecendo por momentos que o seu objectivo é regressar a casa para ficar ao lado da sua amada Penélope. É por isso, a infidelidade que está em causa, a paixão e o prazer imediato em confronto com o dever matrimonial de fidelidade e da união prolongada no tempo do casal.

Por último é possível relacionar os perigos que as sereias personificam (atraindo os navegantes para os rochedos para aí os engolirem), com os perigos do mar. A viagem de Ulisses decorre no mar mediterrâneo, centro da civilização grega. Um dos maiores inimigos de Ulisses é Posídon, o deus dos mares, interveniente directo sobre as forças da natureza influentes nas condições da navegação marítima. Camões, na epopeia “Os Lusíadas”, relata os feitos históricos lusos tendo como ponto central a viagem de Vasco da Gama para a Índia. Tal como na Odisseia são descritos os perigos do mar belo e traiçoeiro, servindo a intriga entre os Deuses para explicar muitos dos fenómenos naturais a que os mares são propensos. Na Odisseia o canto das sereias é precedido por “uma acalmia sem vento”. Mas não é altura de facilitar. O sossego aparente esconde perigos maiores, os quais não podem ser subestimados pelos marinheiros. O mar é manhoso, difícil de conquistar e domar. Quem adormece e dá-se a facilidades está sujeito à tragédia do naufrágio, fica em eminência de ser engolido pelas ondas e apodrecer no fundo das águas. No entanto o mar é amado pelos marinheiros, principalmente pelos que conhecem e respeitam os seus perigos, as suas severas leis.



Em 1947, numa estadia prolongada na Côte d’Azur, Picasso pintou num mural do actual Museu de Antibes, o tríptico "Ulisses e as Sereias". Esta obra insere-se num conjunto de trabalhos sobre o mediterrâneo e os seus mitos. No centro surge um rosto à frente de um mastro. É possível ver uma vela branca de um barco acompanhada pelos tons azuis das águas serenas do mediterrâneo. Na parte de cima do mural, atrás do barco, vislumbra-se a ilha das sereias e duas máscaras que escondem a identidade das ninfas marinhas. O rosto de Ulisses surge ampliado pelo desejo. Curiosamente tem os ouvidos tapados, a que não é alheia a interpretação irónica de Picasso; para o pintor a tentação que o canto das sereias representava era de tais proporções que nem o Herói grego, mesmo preso por cordas ao mastro, poderia suportar tal encantamento. O herói torna-se mais humano, mais pequeno e limitado. As sereias são representadas por formas de peixe com contornos ondulantes e sensuais e pela figura da ave que expressa o seu canto sedutor. Por todos os lados as sereias envolvem o desesperado Ulisses, que parece cada vez mais aprisionado pela dança dos movimentos sugeridos. Na obra surge um novo Ulisses como herói modernista, talvez mais falível e inseguro, mas não menos ambicioso na sua condição de explorar o mundo complexo da mente humana.

novembro 20, 2010

Diário a Beatriz / dia dezoito

"O homem tem necessidade de amar e a mulher de ser amada" Tolstoi

E quando ela diz, eu amo-te, quer de facto dizer, eu quero que tu me ames.
E então pergunto, a quantos enganos não estará condenada a mulher?

"Vi lá longe o inferno das mulheres" Rimbaud

E aquelas procurando com maior urgência, corpo contra corpo, até o amor passar pela carne como a luz pelo vidro sem deixar sequer uma memória, sem produzir sequer um reflexo.

"Vai e doravante não tornes a pecar" João

novembro 17, 2010

Como se faz para candidatar-se a um emprego no FMI? Haverá mais hipóteses para quem vive perto do local de emprego?

Pensarás no homem dos teus sonhos

Continuo a pensar que não sei se é mau ou bom conhecermo-nos tão pouco. A verdade é que não sabemos nada um do outro. Por um lado é agradável porque assim não se rompe o mistério e continuamos a ser aqueles dois desconhecidos que se encontraram em Vila Praia de Âncora, no verão em que aprendemos que nada é mais poético do que o segredo de um olhar cúmplice e silencioso; por outro lado não podemos ignorar o que os dois de antemão sabemos. Se nos tivéssemos conhecido melhor talvez eu não fosse aquela menina tímida e displicentemente ingénua, nem tu o cavalheiro perfeito e encantador que eu vi pela primeira vez numa praia atlântica. Quem sabe se não será melhor continuar tudo assim, na distância, ainda que em dias melancólicos pareça que me sinto a calcar o mesmo areal límpido e fresco, como se a praia da pequena vila corresse pelo mundo fora e estendesse as pedrinhas mais brilhantes (aquelas que procuravas com as mãos quando da tua boca não saiam palavras), até a porta de tua casa.

Não sei se haverá um dia de todos os que teremos no qual nos possamos encontrar novamente. Também aqui é melhor as coisas ficarem como estão. Gosto de saber que este é o maior sonho da minha vida, ver o teu rosto, abraçar-te, saber de ti. Gosto de imaginar que este sonho condiz comigo por ser simples e grande, por se bastar a si mesmo e ter como sonho um caminho a percorrer.

Não te podia dizer nunca que és o homem da minha vida. Sou avessa a esse tipo de conclusões, como se quando um coração despertasse o fechassem logo, para sempre, numa caixa de sapatos. Mas tenho a lembrança dos contos de fadas que outrora me sossegavam, da menina que fui, dos passeios de pés descalços, dos presentes que abri e guardei, do que era o mar até um dia e noutro dia passar a ser outra coisa. Tenho a memória. E nela o medo de ter guardado na caixa de sapatos sem nunca abrir, o que trouxeste no dia que descobri que no fundo do mar não vivem só peixes e plâncton. E se da caixa de sapatos já nada teu pode sair, sou eu que tenho que entrar e fechar-me nela para resgatar os passos na praia, as ondas do mar, as pedras salgadas que distraidamente escolhias como uma criança solene. O teu amigo dizia que era um género de cerimónia de chá e que tu estavas convencido que arrancavas ervas invisíveis coladas às pedras. Lembras-te? E ríamos todos quando os rapazes encenavam a espera do auge da maré alta, momento no qual fervia o reflexo do sol no oceano, hora fidedigna para preparar o chá e contemplar o entardecer acompanhado de vagas promessas.

Hoje, um sentimento estranho advém dentro da caixa, e eu, descalça, penso nos teus pés a massajar a areia nua da praia de Âncora, como se soubesses que algo de incompreensível e natural em mim estivesse enterrado no campo das areias finas. E o teu antigo silêncio a recolher pequeníssimas pedras fizesse parte de um projecto de uma magnífica sepultura para o amor, que ainda hoje prossegues a edificar em minha honra, na altura do dia que o sol vai alto e desconhece as sombras. Por isso, mesmo depois de arrumar habilmente a caixa de sapatos, concedo a um comportamento não habitual em mim - confirmo levemente com a nuca quando ouço a cigana que me diz que és o homem dos meus sonhos mesmo conhecendo-te tão pouco. Então entendo o poeta que falou de almas insepultas. Entendo a força com que o mar recolhe em cada alvorada o monumento que me leva a pensar em ti como se de um mandamento íntimo se tratasse.

novembro 15, 2010

A concretização do promessa de um ex alcoólico.

Será amanhã apresentado o livro "Os melhores copos de água da torneira do país"

novembro 09, 2010

Delirius.

Sigo a vida daquela folha desde que nasceu. Hoje, ela doente e amarelada, entrou em delírio, dizendo que lhe apetecia voar...

Momento de felicidade

Tamanha frase infeliz, transformou um momento infeliz, de alguém bem infeliz, num momento feliz.

Saudades de terra.

Estava no mar ha cinco dias. Um súbito desejo de pisar terra firme levou-o a enterrar os pés no vaso da planta que levava sempre consigo.

novembro 08, 2010

Pensei que o nosso breve amor tinha terminado. A sua última recordação seria uma distante chamada telefónica pelo Natal. Acreditei que tinha acontecido algo de muito bom na tua vida, que não necessitasses mais do que nos uniu; ou que, talvez vivesses algo de mau e estavas tão triste que não tinhas vontade de escrever. Não sei. Dei voltas sem fim e coloquei muitas hipóteses mas não cheguei a nenhuma conclusão satisfatória. Melhor, cheguei a uma, e essa talvez já a soubesse antes: que passasse o que passasse, mesmo que o tempo ditasse a sua lei, iria sempre recordar-te como o rapaz do sorriso mágico. O rapaz que só de olhar para mim fazia-me sentir bem, porque olhava de uma terra inteiramente desconhecida, mas que ainda assim era segura, como uma casa que atrai e acolhe com lírios os viajantes cansados.
Apesar que reconheço que mantive sempre a esperança de que um dia, uma carta tua, chegasse de novo às minhas mãos. E dentro das mãos, dentro de mim, nas marcas das palavras, pudesse olhar desenhado o palpitar nas covas do teu rosto, sonhando que precisasses da minha mediação para que o teu sorriso mágico nunca acabasse.
Diário a Beatriz / dia dezassete

(Esperar pelo que não vem)

Haverá alguma cadeira neste mundo onde se possa sentar para esperar o que não vem? Eu não quero acreditar, mas sou quem diz o que vem e o que não vem, não quero admitir mas a única matéria que me toca é o sonho, porque tudo o resto está definido, tudo o que sobra está morto e dorme nas minhas mãos o último barro da criação, esta terra ausente que me expatriou assim que perdi o meu berlinde de criança.

novembro 07, 2010

Viagem invisível

O optimista sabe que mesmo morto e enterrado, nao deixará de fazer uma fantástica (e gratuita!) viagem á volta do Sol todos os anos.

Escritor: um caçador de palavras

Aquela palavra fugiu-lhe até onde pôde, mas extenuada, acabou aprisionada na sua frase.

Lanterna que vai á frentre.

A mulher, em muita coisa, está 5 séculos á frente do homem. Mas o mêdo e o espírito maternal, fazem-na esperar por nós.

novembro 06, 2010

"A verdade é uma coisa perigosa, pois é precisamente quem se acha na sua posse que se encontra também na possibilidade de mentir."

novembro 05, 2010

O homem possui dentro de si a ânsia ardente do absluto que sendo a pedra mais inabalável da sua existência acaba por ser também a sua identidade. Ora o absoluto do amor apenas se consegue com a traição, o da paz com a guerra, o da fé com o niilismo, o da esperança com o desespero. E se é este o caminho do homem, não há-de emergir para si qualquer apaziguamento enquanto não perscrutar este todas as respectivas funduras.

novembro 04, 2010


Vivemos numa era de enganos, de sombras, em que se procura ver o invisível pela luneta da criatividade, em que se pretende conquistar a dimensão espiritual do homem por intermédio do símbolo. No entanto, não terá sido sempre assim? O que é a humanidade mais que a desilusão de lidar com a sua ausência?

outubro 30, 2010

Apaixonado

O seu ultimo romance ia bem lançado, mas á sétima página apaixonou-se, e não mais a deixou sair com o outro personagem.

outubro 29, 2010

Impressionante

Quis impressiona-la e alugou todas as barracas da praia. Ficaram apenas os dois, a areia, o mar e o nadador salvador, que foi quem mais a impressionou.

outubro 27, 2010

Diário a Beatriz / dia dezasseis

Vejo almas empenhadas nas palavras e como almas elas próprias, as palavras, escravas e senhoras do homem. É preciso libertar as palavras, deixá-las sobrevoar os oceanos como aves desalmadas, pois só as libertando se poderá também o homem achar livre.

outubro 20, 2010

«Mi condiscípulo Schacht es un personaje extraño. Sueña con ser músico. Gracias a su imaginación toca el violín maravillosamente, me dice, y al mirarle las manos se lo creo. Le gusta reírse pero al rato cae en una melancólica languidez que se aviene increíblemente bien con su cara y el porte de su cuerpo. Schacht tiene un rostro blanquísimo y unas manos largas y delgadas, que expresan un sufrimiento espiritual sin nombre. De complexión débil, se inquieta fácilmente; ya esté de pie o sentado, le resulta difícil permanecer inmóvil. Parece una chiquilla enfermiza y tozuda; también le agrada torcer el morro, lo que aumenta todavía más su parecido con una figura femenina joven y un tanto mimada. Ambos, él y yo, nos tumbamos a menudo en la cama de mi dormitorio, vestidos y con zapatos, y fumamos cigarrillos, cosa prohibida por los reglamentos. A Schacht le encanta transgredir los reglamentos, y debo confesar que, por desgracia, a mí también. Allí tumbados, nos contamos largas historias, historias de la vida, es decir, vividas, pero mucho más aún historias inventadas, cuyos hechos sólo existen en la fantasía. Una suave música parece entonces subir y bajar por las paredes, en derredor nuestro. El estrecho y oscuro cuartito se ensancha y van surgiendo calles, salones, ciudades, castillos, personas y paisajes desconocidos, se oyen truenos y susurros, conversaciones, llantos, etc. Es delicioso charlar con aquel Schacht ensoñador. Parece entender todo cuanto le dicen, y él mismo, de rato en rato, dice algo importante. También se queja a menudo, lo cual me hace más grata la conversación. Me gusta escuchar quejas. Se puede mirar cara a cara al interlocutor y sentir por él una profunda y ferviente compasión; y Schacht tiene algo que despierta compasión, aunque no diga cosas tristes. Si la insatisfacción refinada, es decir, la aspiración a algo elevado y bello puede alojarse en algún ser humano, no hay duda de que en Schacht se ha instalado con holgura. Schacht posee un alma
[Robert Walser em Jakob Von Gunten]

outubro 17, 2010

Diário a Beatriz / dia quinze

E talvez um dia, diante da torrente manancial da existência sugada pelo tempo, venha a possuir a ironia de dar um passo em frente, alcançando nesse derradeiro segundo - o mistério iminente - a absoluta flor das vida.

outubro 07, 2010

lata minimalista

sou o poema

A fome do firmamento

O amante é como um irmão gémeo morto à nascença.

O sol fecundou uma terra-planeta, casa breve parcialmente comida pela estrela rival predadora, devorada por dentes da carnívora galáxia.
A grande cortina cobriu a casa para que o último filho do amor sobrevivesse. Às escuras, sem ser visto para não desvanecer.
Metade do planeta numa eterna noite errando,
amputado.
A outra metade - a presa; arrancada de tão visível, de tanto ser luz, alimento desfeito no ninho das paredes da nebulosa sangrenta.
A casa não girou. Alguém esquecido de dar corda à nativa esfera pendente no universo, onde a noite é sempre noite desprovida de seda, o dia é sempre dia inseguro animal à espera da sua vez.
Onde a noite é cúmplice pela morte do amante.
Onde o que foi dia, e gente, e jardim da casa
morre na boca do pássaro.

Já lá vem o cometa batedor
de radar e garras -
o espaço crepuscular não tem opção.

outubro 01, 2010

Diário a Beatriz/ dia catorze

Agora que a minha realidade se tornou escassa à coexistência de todas as minhas memórias e os sentimentos implícitos não me permitem o encontro, por entre o flagelo dos escombros e das brumas da angústia, do carreiro de seixos brancos, procurando apaziguar de certa forma todas as vozes com o alheamento da música, derrubo-me sobre o coração e entrego o apelo do meu olhar esquecido à boca da loucura.

setembro 25, 2010

«Dele se disse que é o mais secreto dos poetas, e seguramente isto aproxima-se da verdade, pois para Walser tudo se convertia por inteiro no exterior da natureza, e o que lhe era próprio, mais íntimo, passou a vida inteira a recusá-lo. Recusava o essencial, o mais profundo: a sua angústia. Tal como ele mesmo dizia no seu romance Jakob von Gunten, disfarçava o seu desassossego no mais fundo das trevas ínfimas e insignificantes».
[Enrique Vila-Matas em "Doutor Pasavento"]

Não sabia desde quando a génese dos seus caprichos passara do campo dos sonhos e da idealização, para terrenos mais subterrâneos. Sabia sim, que um dos resultados desses mesmos caprichos derivou na dignidade por coisas tontas, que já por ser mais sofridas lhe pareciam agora menos tontas, mais aceitáveis, desde que permanecessem na esfera da sua solidão.
Aquilo a que luzia chamar de "suas pequenas dignidades" só a ele lhe dizia respeito, ja não por irremediável capricho, mas por não ter utilidade quer para a ética social, quer para as circunstâncias do mundo.

setembro 23, 2010


«Tenho de procurar uma nova vida, mesmo que a minha vida inteira venha a ser apenas a busca de uma nova vida.»
[Robert Walser em "Os Irmãos Tanner"]

setembro 22, 2010

Diário a Beatriz/ dia treze

Meu Deus! assim que a bruma cessa a sua influência e os labirintos de Minos são reduzidos a um jardim de Versallhes, como se dispara claro o horizonte e usufruindo das minhas asas posso insurgir reconciliado contra a distância. Há muito que o mais puro dos sentimentos que me subsiste é o de achar a morte voluntária.

setembro 16, 2010

Diário a Beatriz/ dia doze

Sinto que estou a ser engolido pelo meu oceano interior e não há terra à vista, rocha alguma, qualquer cetáceo de refúgio. Abriu-se uma brecha desta realidade para essa realidade maior ainda. Já não sei se vou a tempo de optar por uma. Em breve estarão as duas perdidas.


setembro 12, 2010

Diário a Beatriz/ dia onze

Somos homens e mulheres porque queremos ser maiores que as palavras, suplantar os sentimentos, resistir à sinceridade, aos nossos desejos, e, quando de novo arrastados a animais olhar o alto das estrelas e lançar nesses anos-luz a distância do nosso sonho em fuga inacessível à gravidade que nos oprime.

setembro 11, 2010


«Ele diz: «Não amo mulheres. O amor está por reinventar, sabemo-lo. Às mulheres só interessa conquistar uma posição segura. Uma vez instaladas nela, coração e beleza são postos à margem: só um frio desdém permanece, alimento do casamento de hoje. Ou então vejo mulheres nas quais brilha a estrela da ventura e de que eu poderia fazer excelentes camaradas. Estas, são devoradas em primeira mão por brutos sensíveis como fogueiras...»

Delírios, Rimbaud (tradução de Mário Cesariny)

setembro 06, 2010

HAVING THE HAVING

I tie knots in the strings of my spirit
to remember. They are not pictures
of what was. Not accounts of dusk
amid the olive trees and that odor.
The walking back was the arriving.
For that there are three knots
and a space and another two
close together. They do not imitate
the inside of her body, nor her clean
mouth. They cannot describe, but they
can prevent remembering it wrong.
The knots recall. The knots
are blazons marking the trail
back to what we own and imperfectly
forget. Back to a bell ringing
far off, and the sweet summer darkening.
All but a little of it blurs and leaks
away, but that little is most of it,
even damaged. Two more knots
and then just straight string.

Jack Gilbert

setembro 05, 2010

Diário a Beatriz/ dia dez

Ansiando o amor de Adão, Eva entregou-lhe a maça sem lhe dizer abertamente do que se tratava, pois dessa forma obscura já ele, a desejando secretamente, a havia pedido. Vendo o fruto Adão terá percebido que também a amava e provou. E assim se concebeu a condenação do sonho.

setembro 01, 2010

D. Juan telefonou

Quando telefonou estava a preparar-me para almoçar, daí hesitei mas acabei por atender. Depois dos cumprimentos e de alguma brincadeira apalermada da praxe, esperei que me falasse do que presumia ser mais um episódio da sua vida de D. Juan.
Geralmente não me interessavam os assuntos do coração ou simplesmente dos flirts mais ao menos amorosos, no caso dele uma necessidade extrema de sentir-se querido (um estágio precursor do sentir-se amado) e valorizado inclusive pelos seus predicados físicos. A minha vida tinha há muito um sabor cinzento e de certa forma austero no que respeita a temas frívolos, de modo que só mesmo este peculiar e humorado D. Juan era capaz de fazer-me cogitar efabulações e cenários sobre as suas aventuras, a que não era alheia uma certa perversidade ainda ingénua com que abordávamos los temas calientes. Apreciava sobretudo quando me contava a parte que entregava à sua nova eleita o mesmo poema de sempre do poeta romântico César Britos. Disse-me que tínhamos razão quando concluíamos amiúde que a vida é bonita, tanto no bom como no mau. A sua boa disposição tocava lá no alto, pelo facto de estar, segundo ele, na fase curiosa do amor platónico, o que para ele em grande parte significava a falta de contacto físico. Porém já tinha sido compensado com notas escritas da não menos Dª. Juana com frases arrebatadoras tipo: "Sinto um tremor em cada palavra porque tu vives em cada uma delas".
-Essa é a fase mais bonita -disse, animando-o.
-Talvez, mas eu prefiro a fase seguinte - respondeu mostrando ansiedade.
-Pois! A fase seguinte é a melhor, mas não é a mais bonita.
-Tens razão -disse-me rindo e fazendo-me rir -São duas coisas diferentes. Nunca tinha pensado dessa forma. Talvez o mais bonito não seja o melhor. Eu acho esta fase bonita mas quero é a fase melhor.
Rimos algum tempo. Como de outras vezes o "bonito" tinha sido a nossa simples conclusão sobre um facto da vida. E era sobretudo isso que me fascinava nas nossas indagações. Pensando em conjunto, sem saber se brincávamos ou falávamos seriamente, a união das nossas interpretações tornava possível a total compreensão de qualquer acontecimento. Representávamos algo que nunca tínhamos ensaiado, mas que quase sempre conduzia a uma resolução prática, convencendo um ao outro que a vida era leve - como se o objectivo de atingir o "melhor" fosse um conceito ilusório de nos sentirmos integrados, preparados para a massa existencial. A vida era "bonita", o que pelo menos naquele dia abriu-me o apetite enquanto almoçava mais uma vez só.

agosto 30, 2010

aldeia do céu

«...Licancabur queria dizer em Kuanza, que era um dialecto de Atamaca, terra de acima. Havia também quem, cristianizando-o, lhe chamasse de aldeia do céu, ou directamente céu. Começou a dar-me muitos detalhes do género e a implicar-me cada vez mais na investigação das almas ultraterrenas que possivelmente estavam todas refugiadas no alto do vulcão chileno.
-Descobriremos a verdade do além -disse ele
-Cuidado! Que quem busca a verdade acaba sempre por merecer o castigo de encontrá-la -adverti-o eu.»
[Enrique Vila-Matas in "Exploradores do Abismo"]

Não sei porque seleccionei este fragmento. Virá outro relacionado.
Não sei porque escolhi este momento. Este é um dos momentos, de núcleo inteiro..........................................

Sei que a busca da verdade é a ilusão mais querida, e parece-me justo procurarmos o castigo que só a cada um pertence. E não quero mais que aliviar a dor do teu castigo, tu meu herói, que encantado segues voltado para a face mais elevada da terra, onde pelo menos para ti dançam sem surpresa, céu azul e fogo do passado.
Dormem o homem e a mulher que não voltarão a ser - que a tua respiração não cesse para recordar; ou queria dizer, que a tua respiração não cesse, timidamente já - não cesses.
Pisa, por favor, a lava da encosta. São marcas alteadas do desejo engolido, matéria que não guarda o mais pequeno acontecimento. E senão te chegar tudo que ardeu desde as pontas dos tempos, pisa as almas de todos os piedosos mortos depositadas no cimo da cratera, ansiosas elas de minorar o teu castigo, a tua busca, também do teu abismo modelar as cinzas.

Não confundas a tua voz com o lago gelado
nem a visão do cume mais alto com o cume mais alto
nem a fotografia de Licancabur com Licancabur
porque o dono do momento é segredo bem guardado.

agosto 29, 2010

Diário a Beatriz/ dia nove

E então o viajante disse para si mesmo, nas suas orações:
Chegará um tempo em que sobreviverá a desolação, e em tal aridez te encontrarás que tudo te soará, oco e vazio, um doce chamamento ao fim dos trabalhos. Nessa altura, presta atenção, será momento de comeres sem fome, beberes sem sede, acreditares sem fé e amares sem amor.

agosto 26, 2010

Diário a Beatriz/dia oito

E eu que estava prestes a deixar a humanidade, olhando uma vez mais por sobre o ombro esquerdo senti essa consciência que me observava assim e percebi que ainda não era digno do exílio. Ao fundo a pergunta que a maré vaza vinha tornar submersa: Porque haveria alguém de criar um sítio onde não existe mais ninguém?


agosto 20, 2010

Diário a Beatriz/dia sete

Todos estes erros por nós cometidos, de indiferença, de afastamento, para preservar afinal uma hipótese ainda que ridícula, pecaminosa, de um reencontro nas cinzas, essas instâncias de conservação que nos levam agora numa velocidade furiosa ao encontro subterrâneo. Saberemos algum dia deixar a clandestinidade, ou estarão definitivamente fechados os nossos olhos?

agosto 18, 2010

Uma rabujice

Quando digo que trabalho numa livraria, as reacção nunca divergem muito. Entre o optimista “É melhor do que a caixa de um super-mercado” e o lisonjeiro “O livreiro tem o seu quê de sedutor”, eu lá vou baixando a cabeça com um sorriso comprometido. Raramente rebato com “O dia-a-dia de um livreiro não é ler livros”, e cada vez mais me escuso a explicar que atrás de um balcão o trabalho é sobretudo burocrático (criar fichas de livros, conferir e dar entrada de facturas, imprimir listagens de devolução, aceitar pagamentos e dar trocos ou debitar o ‘verde código verde’ do multibanco) ou bruto, quando há que recolher e acomodar em caixas as trintenas de livros que três meses antes foram entregues, etiquetados, desempacotados e postos à venda.
Se durante alguns meses este tipo de rotina é suportável, porque nimbada da expectativa romântica de que em breve haverá bons livros a conhecer e pessoas interessantes com quem conversar, chega – e, no meu caso, digo chega quando ando nisto há três anos – a altura em que é quase com nojo que vemos chegar as novidades dos grandes grupos editoriais e com condescendência que atendemos clientes quase sempre impacientes, irascíveis e que, se não encontram o livro que procuram, exigem que o produzamos na hora (noutro dia poderei falar do poder demiúrgico que é atribuído ao livreiro sobre toda a letra impressa).
Mas tudo isto, podem pensar os apologistas do charme livreiro, não é mais do que um desabafo: estar rodeada de livros é reconfortante, muito mais do que estar rodeada por pacotes de arroz e leite, pensam por sua vez os eternos optimistas. Concedo que, dentro da gama de profissões que uma licenciada mediana pode exercer para trazer os geracionais quinhentos euros para casa ao fim do mês, a de livreira não é má. Não é, por princípio, desagradável mexer em livros e dar à língua com aqueles que, num recanto mais silencioso da livraria, assumem um tom confessional. O problema está na qualidade dos livros, na lógica ignóbil do mercado editorial e na rarefacção de gente que, comprando livros, não o faça por desfastio ou moda.
Passo a explicar. Ou, para fazer desta crónica aquilo que pretendo, passo a rabujar: Entre a montanha de livros que uma livraria generalista recebe diariamente, a maioria parece ter sido engendrada por cabeleireirinhas empáticas ou vendedores de automóveis com auto-estima inflacionada. Há também os jornalistas a quem um dia a mãezinha disse que escreviam muito bem. Só para dar um exemplo, hoje criei a ficha do romance de um jornalista cujo enredo gira em torno do futebol e de vaginas rapadas (sic), através do que o protagonista empreende uma jornada de descoberta pessoal. Há as cozinheiras que mordem, há a Arte da Guerra para mulheres obesos e desempregados, o Salazar-chic que se ancora na estante da História de Portugal para fazer redivido o simpático ditador, há o clube de amigas da Ophra, há brasileiras que ensinam as portuguesas a segurar o home’…. Etc, etc.
Depois há as modas dos títulos: “A menina que…”, “O homem que…”, “O gatinho com cauda de pónei que…”. Diga-se em abono deste género de livros (geralmente atravancados entre as secções de Romance, Infantil ou Memórias/Testemunhos) que são feitos por gente simpática – as tais cabeleireiras com o 12º ano de escolaridade – para gente simpática. O que só os torna mais irritantes.E a moda das badanas e dos autocolantes cintilantes, onde outro autor elogia o autor do livro em questão. Uma mão lava a outra e os editores borram qualquer obra com estes dizeres: “Nem o Dostoievski faria melhor”, “Um livro a ler antes de morrer”, “Lobo Antunes apresenta”, “A obra que vai curar a sua vida”, “Os 10 mandamentos da perda de peso”, “Se leu o livro X, este é do género”. E por aí adiante.
Preocupante mesmo é que quase toda a literatura estrangeira esteja reduzida a traduções de originais em língua inglesa. As editoras só compram os direitos daquilo que se pode traduzir e, pelos vistos, só se pode traduzir do inglês. Quando um autor de outra língua é Nobel, lá se faz o especial favor de editá-lo em português, até porque algum grau de exotismo serve sempre para desanuviar. O ritmo de edição é alucinante, não convida à ponderação por parte dos editores, à reflexão por parte dos leitores. Para a grande maioria dos livros que recebo, guardo uma palavra: grotesco. À vontade de editar um livro, que a tenho, ocorre-me um pensamento: obsceno.
Preocupante também é que, quem não conheça a nossa literatura e procure jovens autores portugueses, quase só encontra homens. Além da tríade de rapazolas trintões do costume, lá indico a Dulce Maria Cardoso, a Mafalda Ivo Cruz (ambas passadas dos quarenta). E pergunto-me: Não haverá mulheres a escrever? Das mulheres que escrevem, espera-se que explorem temáticas ‘femininas’? Uma jovem autora não é credível? Não é legítima? É desconfortável para os editores e para o público que as mulheres explorem temas que não sejam do âmbito do doméstico e das relações amorosas?
Mas estas questões fogem já ao meu propósito inicial, que era o de mostrar por que motivo uma livreira – ainda que possa ter, como uma vez ouvi, o emprego mais nobre reservado a um pobre – nem sempre está rodeada de conhecimento em ebulição. A sensação que tenho é sobretudo de ruído. Capas brilhantes sobre capas em relevo. Formatos mais propícios a ficarem na estante de casa do que a andarem no bolso. Livros a metro, às montanhas, campanhas promocionais assassinas, ritmos de publicação, venda e devolução absurdos… Quando por um acaso, por um golpe de sorte, descubro uma página de leitura refrescante, trago o livro para casa, para o sofá, para longe do espaço babélico da minha livraria generalista.

agosto 13, 2010

Diário a Beatriz/dia seis

Sei que nunca me vais amar como eu gostaria que me amasses, da mesma forma que eu nunca te vou amar tal desejarias de facto. No entanto, julgo que do nosso amor desigual se encontra o que deve em necessidade do que cada um de nós no mais íntimo de si para além do seu universo não pode sequer imaginar.
Onde termina a minha possibilidade, tu lá, eu a tua, talvez. Cada um de nós a resposta a cada um para lá dos mesmos.

agosto 10, 2010

Diário a Beatriz/dia cinco

E então para com o quê e para com quem deverá estar a minha lealdade? Penso, mas não quero pensar. A moralidade maior, envergonhada, submete-se muitas vezes ao regulamento de cartilha.
A minha aliança é para com a luz que me penetrou o cárcere, e por ela lutarei de rosto visível todos os deuses.
O que o amor nos oferece é a coragem de criar um universo iludido o suficiente a nos tornar capazes de combater os delírios vigentes.
Assim Seja.

agosto 05, 2010

Diário a Beatriz/dia quatro

Como é isto de viver pela metade ou, melhor dizendo, pela inteireza do que é falta? Apetece todos os dias avançar nas páginas do Bukowski sobre tal mistério, pairar sobre ele como só aqueles que lhe adquiriram por mérito próprio do álcool a subtileza de o caminhar nas águas de Rembrandt. Estou esquecido do que é responder com a inocência das crianças. A tua sabedoria envolve-me com a mortalha almiscarada de um longo retorno à Babilónia restabelecida dos meus sonhos.

agosto 03, 2010

Uma verdade é que não somos nada difíceis de consolar por um bocado, outra verdade é que podemos viver muito tempo daquilo que acreditamos que vamos receber.

agosto 02, 2010

Diário a Beatriz/dia três

Tu lutas e eu vejo-te lutar como se eu fosse um cadáver; contra o Outono e o Inverno. E sei que não fizeste nenhuma conta, não traçaste qualquer objectivo, continuarias a lutar mesmo que eu não estivesse aqui, e nessa altura evocarias o meu nome contra o vento e não cessarias de o chamar como se ele próprio fosse a causa do teu cansaço, da tua doença, da tua morte. Não que isto se chame amor, mas é a vida, o seu canto reverencial que reúne em si o milagre que nos une.

julho 31, 2010

Diário a Beatriz/dia dois

Em contacto constante com naturezas mortas é natural que as minhas mãos vivas transmitam à minha cabeça a desolação do infinito. Aridez. Um vulto vagueará tal aridez, mas ainda não cheguei a essa distância. Por enquanto as portas, a chuva, as sirenes, os tufões. Numa revolta constante para saber qual deles chegará com sucesso aos meus ouvidos e irá conseguir aceder secretamente à nuca dos meus olhos, o esconderijo mais cobiçado por todos os parasitas.
Saí de casa e voltei com Shutter Island, o último de Scorsese, gostei do início e do fim, mas não percebi o que anda lá pelo meio.
Existe um grande preconceito relativamente à loucura. Se conseguíssemos perceber a ilusão calculada em que vivemos, talvez não desprezássemos tanto a sinceridade em favor do pragmatismo.

julho 29, 2010

A cada um o seu teatro. Cada um a representação cénica do que diz a mãe, do que diz o pai, do que dizem as câmaras de vigilância no local de trabalho. Cada um a patinhar o chão que a lenha ardida em solidão encheu de fuligem. Os outros, vistos de longe são a soma dos seus vestidos. Finos como caniços. Insignificantes como o suspiro de um velho. Mas no Verão pavoneiam-se com os seus corpos nus à espera que alguém olhe, como se ninguém estivesse a olhar. Cada qual no seu palcozinho onde um holofotezinho faz as vezes do sol. Cada um ensaia o texto que a mãe, que o pai, que as câmaras de vigilância do local de trabalho. Cada qual fala em circuito fechado a duvidar da sintaxe, dos sintomas. As impenitências da língua obrigam a uma constante revisão dos sentidos.
Diário a Beatriz/dia um

Ainda nem vinte e quatro horas volvidas e a resolução que muitas mais deverá enclausurar me parece já uma cedência frívola a uma ordem que apesar de anunciada elegante pelos folhetins nunca sofreu real investida da morte sobre os seus domínios. Não será melhor mentirmos ao mundo do que a nós próprios? Se dermos uma hipótese que seja à dúvida talvez ela nos vença. A separação não é virtude nem infâmia nem o que quer que seja. Ipso facto, aquele que quiser alcançar a aurora deverá expor o seu corpo à treva?


julho 26, 2010

Conversa com livros

«Sentia que se esgotava em mim o interesse e a curiosidade pelas coisas que ia deixando para trás, mas estava animado por um tal entusiasmo, por uma tal curiosidade pela vida nova que se abria à minha frente, que tudo o que existia me parecia digno de interesse. Tremia de entusiasmo, baloiçava as pernas nervosamente, até que a profusão, a riqueza, a complexidade de todas as possibilidades se transformaram, dentro de mim, numa espécie de terror.»
[Orhan Pamuk em "A Vida Nova"]

Parecia que as coisas antigas de que me queria ver livre a todo o custo não me largavam. Não saberia ainda nomeá-las, e apesar de virar as costas à almágama dispersa na velocidade invisível e pertubadora, tentava atrair uma força capaz de expulsar os fantasmas que sentia atravessarem-me por toda a pele. Tinha que haver algo mais, mesmo que duvidasse incessantemente da minha sorte em atingir a Vida Nova. Por vezes, preocupava-me a ideia recorrente de que o meu tremor e fascínio pela novidade fossem uma farsa, como se eu fingisse em acreditar em tudo o que não conseguia ver, como tivesse ganho colateralmente um hábito, mesmo um vício; um reflexo mais do que condicionado, de faculdade inoperante (para não dizer trágico).

julho 25, 2010

E isto agora já me parece um desafio. Escrever em exíguas linhas de escasso engenho o indispensável longo alcance proposto a concluir a introdução deste blogue, dar continuidade ao diálogo aberto que se pretende com os restantes cronistas, falar também dos epitáfios colectivos e por fim deixar evidenciado o que tudo isto pode contribuir para uma tomada de consciência elucidada acerca da alteração constitucional proposta pelo PSD. Partindo daqui, não tenho dúvidas que irei precisar, para além de um verdadeiro rasgo de génio, da ajuda de todos os leitores. O lapso de génio, porém, já tive e foi o de pedir ajuda a terceiros. Façamos assim, de seguida eu vou procurar escrever uma alegoria e as senhoras e os senhores irão demonstrar a boa vontade e a imaginação de a transformar num ensaio de Montaigne.
Estes eventos tomaram lugar entre as 14h00 e as 20h00 de ontem. Para quem não está a par de todos os esguios detalhes da interessante agenda cultural da zona metropolitana do Porto, começo por dizer que terminou este sábado em Serralves a iniciativa jazz no parque que trouxe ao Porto alguns dos mais reputados músicos nacionais e internacionais da referida manifestação artística. A entrada não era livre e os convites custavam dez euros. Ainda assim e por "apenas" dois e meio todos aqueles que tiveram a pouca sorte de não conseguir o ingresso puderam e poderão dizer: «teremos sempre o parque». O escolho de tudo isto, no entanto, encontra-se no facto de, não obstante a qualidade indiscutível da música de Liebman e companhia, a beleza vegetal do espaço, principalmente de um imponente pinheiro manso presente nas imediações, e do idílio cesariano sugerido pelo voo dos aviões com escala no Sá Carneiro, relegar para segundo plano os acordes eximiamente retirados pela band das madeiras, dos metais, das cordas e da percussão. E assim quantos dez euros não era cada um de nós capaz de oferecer a quem nos prometesse uma tempestade capaz de depenar o pinus dos seus frutos e um bilhete para fora de Portugal em cada uma daquelas barcaças voadoras? Contudo, não é lícito (entenda-se lúcido) desejar tanto, como diria o capitão Nascimento no filme Tropa de Elite, o sistema não existe para resolver os problemas das pessoas, o sistema existe para resolver os seus próprios problemas.
Bem hajam.

julho 24, 2010

Then practice losing farther, losing faster. A perda como aventura, como precocidade. Acto programado de crescer – melhor, amadurecer no sentido em que os frutos deixados a sós amadurecem. Não aguentar que as coisas amadas nos façam sofrer – conhecer-lhes antes do tempo o limite, esvaziá-las. A perda como golpe e excitação.

julho 22, 2010

Escrevemos com derradeira esperança, tentando cada um lapidar a sua frase. O que fica na margem dos poemas, da prosa, da escrita do dia ou de um dia sem escrita. Restos, uma costura mal alinhavada. Escrevemos: se partilhamos é por acaso.

Ossário